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12 Mar

O transporte aéreo internacional de cargas, a Convenção de Montreal e a defesa do princípio da reparação civil integral

7 de março de 2025
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Recente decisão do STF: uma outra vista sobre o mesmo ponto

1 | BREVE INTRODUÇÃO

A Suprema Corte brasileira recentemente reafirmou jurisprudência no sentido de aplicar a Convenção de Montreal também aos litígios envolvendo transportes aéreos internacionais de cargas: falo da decisão no Recurso Extraordinário 1.520.841/SP, que seguiu o procedimento para julgamento de recursos repetitivos.

Tenho lido e ouvido colegas sustentarem que não mais seria possível evidenciar qualquer conflito entre a limitação de responsabilidade da Convenção de Montreal e o princípio da reparação civil integral — princípio que é um dos mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro, pois assentado na ordem moral.

Discordo desses colegas; e a levar em conta os exatos fundamentos da decisão, entendo que o assunto continua em disputa.

O que o Supremo Tribunal Federal reafirmou foi que a Convenção de Montreal é a fonte legal primaz para a solução de todos os litígios de transportes aéreos internacionais, nada além, nada aquém.

Desde o surgimento do Tema 210 de repercussão geral, muito se discutiu sobre um possível distinguishing para limitá-lo apenas aos casos diretamente ligados aos termos da decisão paradigma, isto é, ao transporte de passageiros com extravio de bagagem.

Pleiteou-se por bom tempo a necessária distinção entre litígios relacionados ao transporte de passageiros, nos casos de extravio de bagagem, e aqueles em que a seguradora, sub-rogada na pretensão de um dono de carga, busca o ressarcimento da indenização que pagou.

Eram sólidas as razões para essa distinção. Não cabe comentá-las aqui para não alongar o texto, mas é possível encontrá-las em outros artigos deste autor.

Tão fundadas eram as razões da distinção que a própria Corte a evidenciou muitas vezes, por decisões monocráticas ou colegiadas: ARE 1.331.340/SP, AG.REG. no AI 822.191, RE 1.047.443/SP, EDcl nos EREsp n. 1.289.629/SP, entre outros.

Embora eu continue convencido de que as situações são distintas e não devem ser tratadas de forma idêntica, a discussão perdeu sentido diante do entendimento, agora pacificado, de que o Tema 210 também se aplica ao transporte de cargas e aos casos demandados por seguradoras sub-rogadas.

Então, é certo que o Tema e a Convenção incidem. Ponto.

Há algum tempo eu já evitava questionar a primazia da Convenção de Montreal, ajustando o enfoque argumentativo para algo mais ou menos assim: de modo calibrado, saudável e de acordo com as circunstâncias, a Convenção de Montreal se aplica sempre; a limitação tarifada, nem sempre.

A limitação de responsabilidade depende das circunstâncias previstas na própria Convenção de Montreal e, caso não estejam presentes, o benefício não se aplica aos transportadores.

De fato, para muito além de se questionar o anacronismo da Convenção de Montreal e da sua grave enfermidade jurídica sobre a limitação de responsabilidade (algo manifestamente incompatível ao moderno pensamento acerca da responsabilidade civil e dos contratos e danos), entendo que a própria norma internacional apresenta meios hábeis para garantir, a partir das singularidades de cada caso, o princípio da reparação civil ampla e integral.

Quais são esses dois caminhos? O primeiro é considerar a fatura comercial (invoice) e outros documentos do processo de comércio exterior e do próprio transporte internacional como suficientemente hábeis para o preenchimento da norma sobre a declaração de valor, independentemente do pagamento do frete ad valorem; o segundo, é identificar conduta temerária do transportador, a falha operacional significativa, que é mais do que hábil para inibir o benefício da limitação.

2 | SOBRE A DECLARAÇÃO DE VALOR

Sabidamente a Convenção de Montreal dispõe que, havendo formal declaração de valor da carga, o transportador aéreo está obrigado a indenizar integralmente o dono dela ou a seguradora deste em caso de dano (falta ou avaria).

Muitos entendem que essa declaração há de ser acompanhada do pagamento de um valor de frete substancialmente maior do que o normal.

Outros — e quando escrevo outros, penso especialmente nos órgãos jurisdicionais — entendem que o pagamento desse frete maior é irrelevante, bastando o pleno conhecimento, pelo transportador, do valor da carga confiada para transporte.

Endosso esse segundo time, até porque, além de haver um elemento condicional expresso no próprio art. 22.3 da Convenção de Montreal (“se for cabível”), considero uma espécie de chantagem comercial a exigência de valor maior de frete para cumprir aquilo que é básico, fundamental, assentado no melhor direito e na ordem moral; afinal, quem causa um dano tem de reparar o prejuízo na mesma proporção em que o causou.

Mas para que meu entendimento não fique apenas no campo da retórica e da indignação (justa) contra o chamado frete ad valorem, tenho por certo que documentos como a fatura comercial e o conhecimento aéreo de transporte internacional de carga, emitido pelo próprio transportador, são mais do que hábeis para o preenchimento da norma de declaração de valor.

Por meio deles o transportador sabe o que transporta e o valor daquilo que transporta; uma alegação de que o ignora é simplesmente inverossímil. Fere a lógica e agride a boa-fé.

E assim entendo amparado em substancial corrente jurisprudencial que diz:

AÇÃO REGRESSIVA DE RESSARCIMENTO DE DANOS – TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL DE CARGA. Alegação de extravio de carga durante transporte internacional. Sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos, condenando a ré ao pagamento de ressarcimento com base na Convenção de Montreal, levando em conta o peso da unidade perdida. Recursos de ambas as partes. RECURSO DA AUTORA: Pleito de reforma da sentença para condenação integral da ré. ADMISSIBILIDADE: Comprovação do conhecimento do valor da carga pelo transportador e referência expressa à fatura comercial (invoice), afastando a tarifação da Convenção de Montreal. Precedentes que corroboram a integralidade da restituição do valor. Sentença reformada. RECURSO DA RÉ: Alegação de inexistência de prova de nexo de causalidade entre o extravio e o transporte realizado, e de que sua responsabilidade cessou com a entrega da carga em Miami. Argumento de que foi contratada apenas para o trecho Hong Kong-Miami. INADMISSIBILIDADE: Evidências documentais comprovam a responsabilidade objetiva do transportador pelo extravio durante a cadeia de transporte até Manaus. Responsabilidade objetiva do transportador confirmada. Sentença mantida quanto ao dever de ressarcimento. RECURSO DA AUTORA PROVIDO E RECURSO DA RÉ DESPROVIDO.  (TJSP;  Apelação Cível 1125035-41.2023.8.26.0100; Relator (a): Israel Góes dos Anjos; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 29ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/10/2024; Data de Registro: 17/10/2024)

AÇÃO REGRESSIVA – Contrato de seguro – Transporte aéreo de carga – Mercadoria extraviada – Sentença de procedência – Inconformismo da ré. CONVENÇÃO DE MONTREAL – Pretensão de aplicação da Convenção de Montreal, com a consequente limitação do valor da indenização – Descabimento – Só é aplicável a indenização limitada nos casos de destruição, perda ou dano da carga quando não houver declaração especial de valor da carga fornecida ao transportador – A commercial invoice atende ao requisito, pois nela constam explicitamente as especificações do produto, bem como o valor exato da carga transportada. Sentença mantida – Recurso desprovido. (TJSP;  Apelação Cível 1026782-21.2023.8.26.0002; Relator (a): Rodolfo Pellizari; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II – Santo Amaro – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/02/2025; Data de Registro: 21/02/2025)

Em complemento tenho que, se o transportador, ao tomar conhecimento do valor da carga pelos referidos documentos, não exigir imediatamente o recebimento de mais frete, será lícito concluir que ele aceitou como justo e valioso o valor inicialmente cobrado, e também por aqui se preenche o requisito do frete ad valorem.

De um modo ou de outro, o transportador tomou conhecimento do valor e executou a operação de transporte satisfeito com o montante que recebeu. Assim, não é aceitável o argumento de que ainda assim não houve a declaração e de que, portanto, não foi satisfeita a contraprestação por parte da vítima original do dano.

3 | SOBRE A CONDUTA TEMERÁRIA 

Minha opinião é que a norma de limitação de responsabilidade é anacrônica. Ela foi criada quando da Convenção de Varsóvia, da qual a de Montreal é sucessora, nascida no início do século passado.

A navegação aérea naquele tempo era outra, e a indústria precisava de proteção especial para sobreviver e prosperar.  O domínio do estado da técnica era outro, assim como os riscos assumidos pelos transportadores.

Situação absolutamente distinta da que se vê no tempo atual, em que as grandes fabricantes de aeronaves trabalham com o conceito de risco-zero e as empresas aéreas são poderosas, estratégicas.

Hoje, quem precisa de especial proteção é o usuário do serviço de transporte, o dono da carga, que paga sempre elevado valor de frete e tem o direito garantido pela estampa legal da imputação objetiva de responsabilidade do transportador.

No sistema legal atual não mais se admite que devedores de obrigações de resultado, fornecedores de serviços, descumpram seus deveres fiéis e causem danos e prejuízos.

A prestação de fazer do transportador deve ser satisfeita segundo os vetores do dever geral de cautela, que lhe é inerente e inseparável.

Tal qual o depositário, o transportador tem os deveres objetivos de guardar, conservar e restituir a coisa recebida, sob pena de presunção de responsabilidade e dever civil de reparação integral.

É bem verdade que a Convenção de Montreal ainda prevê, injustamente, diga-se, a limitação de responsabilidade, mas não é menos verdade que ela própria afasta esse benefício diante do dolo do transportador e/ou de sua conduta temerária.

Por conduta temerária, há de ser entendida aquela falta operacional inescusável, a culpa grave, o quase-dolo.

Por mais que a situação seja regida pela responsabilidade objetiva e não seja maximamente necessária uma caracterização da culpa, convém reavivá-la para bem dimensionar a limitação de responsabilidade em relação à própria Convenção de Montreal e aos elementos básicos de justiça.

Defender o ressarcimento integral não é necessariamente negar a Convenção de Montreal, mas antes, e ao revés, conferir a ela uma melhor interpretação e uma justa aplicação.

É a Convenção que, em espécie de mecanismo de calibragem, oferece normas oportunas e moralmente ordenadas de eventual afastamento da limitação de responsabilidade e império da reparação civil integral.

Novamente amparo-me na boa jurisprudência para a defesa deste importante ponto:

AÇÃO REGRESSIVA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. APELAÇÕES DAS RÉS PARCIALMENTE PROVIDAS. DANOS MATERIAIS. DIREITO DE REGRESSO. SEGURADORA. NÃO INCIDÊNCIA DO TEMA 210 DO STF. Discussão pacificada no STF. O precedente paradigma do Tema nº 210 do Supremo Tribunal Federal (“Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.”) não se aplica ao transporte de cargas e ao caso sob exame. Jurisprudência consolidada no STF. Será aplicável a legislação infraconstitucional pertinente. CONDIÇÃO DA AÇÃO. LEGITIMIDADE PASSIVA. RECONHECIMENTO. A narrativa da petição inicial descreveu a relação jurídica das partes e articulou lógica e adequadamente os fundamentos (causa de pedir) e o pedido. Narrou-se a existência de contrato de transporte entre a empresa segurada e a corré DSV Air & Sea Brazil, como agente de cargas (fl. 3). Era o suficiente para aplicação da teoria da asserção. Ressalta-se que a atuação da DSV Air & Sea Brazil se deu na condição agente de cargas para a promoção do transporte dos bens importados. Destarte, ao integrar a cadeia de transporte, deve responder solidariamente com a empresa transportadora. Alegação rejeitada. DECADÊNCIA. INOCORRÊNCIA. CIÊNCIA DAS AVARIAS DENTRO DO PRAZO PREVISTO PELA CONVENÇÃO DE MONTREAL. MANTRA SISCOMEX. SUFICIÊNCIA. Por meio do Mantra SISCOMEX de Importação (fl. 185), a empresa de transporte aéreo internacional foi cientificada da existência de avarias nas cargas na data do desembarque. Objeção rejeitada. CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL DE CARGAS. AVARIAS COMPROVADAS. NEXO DE CAUSALIDADE IDENTIFICADO. NÃO APLICAÇÃO DA LIMITAÇÃO PREVISTA NA CONVENÇÃO DE MONTREAL E VARSÓVIA. DANO CAUSADO POR AÇÃO OU OMISSÃO DA TRANSPORTADORA E SEUS PREPOSTOS. INCIDÊNCIA DO ART. 22, “5”. Cuida-se de ação regressiva promovida pela seguradora buscando o ressarcimento da indenização securitária paga em favor da segurada em razão dos vícios identificados na carga transportada pela ré. Sentença de procedência. Recurso das rés. Restou demonstrado nos autos as avarias na carga transportada pelas rés. De acordo com o Mantra SISCOMEX de Importação (fl. 185), a carga transportada pelas rés apresentou as seguintes avarias: diferença de peso, amassado, rasgado, furado, aberto e indício de violação. Em seguida, quando a carga chegou ao destinatário final, emitiu-se Certificado de Vistoria (fl. 190) que constatou a falta de 6 volumes e as avarias na carga. Prova documental fotográfica no mesmo sentido (fls. 199/202). Incidência do art. 22, “5” da Convenção de Varsóvia. Culpa grave do transporte aéreo. Dano resultado de conduta do transportador e seus prepostos, na acomodação adequada da carga. Reparação integral mantida. JUROS DE MORA. INCIDÊNCIA A PARTIR DA CITAÇÃO. POSIÇÃO CONSOLIDADA NA TURMA JULGADORA. APLICAÇÃO DA TAXA DE 1% AO MÊS. Na hipótese de ação regressiva promovida pela seguradora em face da causadora do dano, a incidência dos juros se dá a partir da citação. Relação controvertida de natureza contratual. Os juros de mora incidirão à razão de 1% ao mês. Não incidência da SELIC. Precedentes do STJ e do TJSP. Jurisprudência ainda não pacificada pela Corte Especial do STJ. Recurso das rés acolhido apenas no ponto do termo inicial dos juros de mora. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. AUSÊNCIA DE PROCESSAMENTO. DIREITO DE REGRESSO. DISCUSSÃO EM AÇÃO PRÓPRIA. Situação em que a ré (DSV AIR & SEA) fez a denunciação da lide à corré LATAM AIRLINES. Apesar do pedido contido na contestação, não se verificou processamento da ação incidental. Acolhimento do recurso que implicaria anulação da sentença. Inadmissibilidade por afronta aos princípios da duração razoável e efetividade do processo. De qualquer modo, o direito de regresso poderá ser levantado em ação própria ou até mesmo na fase de cumprimento de sentença, se houve pagamento pela ré denunciante. Pedido rejeitado. SENTENÇA REFORMADA. RECURSOS DAS RÉS PARCIALMENTE PROVIDOS.  (TJSP; Apelação Cível 1013212-36.2021.8.26.0002; Relator (a): Alexandre David Malfatti; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II – Santo Amaro – 15ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/08/2023; Data de Registro: 15/08/2023)

Maior sentido ele adquire quando a autora da pretensão é seguradora sub-rogada, cujo direito de regresso nasce da sub-rogação.

A seguradora defende o negócio de seguro, os legítimos direitos e interesses do colégio universal dos segurados, razões pelas quais merece tratamento distinto e o respeito forte ao direito de regresso.

4 | IMPORTANTE COMUNICADO AO MERCADO SEGURADOR

Acredito piamente nesses dois elementos de defesa dos legítimos direitos e interesses do mercado segurador e, por meio deles, garantir ressarcimentos integrais, a despeito da nova posição do STF sobre o Tema 210 de RG.

Tanto assim que no dia 07.02.2025, encaminhei, em nome de Machado e Cremoneze – Advogados Associados, o seguinte comentário, com o propósito de comunicado formal.

Abro aspas

Recentemente, o STF aplicou a técnica dos recursos repetitivos ao RE 1520841 e gerou o Tema 1366.

O caso afetado para tanto tinha como pano de fundo o Tema 210/RG.

Em que pese o brilhante trabalho dos advogados que postularam o ressarcimento em regresso da seguradora sub-rogada contra o transportador aéreo, não foi possível a vitória integral.

A Corte entendeu aplicável o Tema 210/RG também aos litígios envolvendo transportes de cargas e protagonizados por seguradoras sub-rogadas.

Esta foi a ementa da decisão: Direito Constitucional e internacional. Recurso Extraordinário. Transporte aéreo internacional de carga. Responsabilidade por danos materiais. Limitação em convenções internacionais. Reafirmação de jurisprudência.

E assim se apresenta o tema originário da afetação do recurso:

Tema 1366

Título: Responsabilidade por danos materiais em transporte aéreo internacional de carga.

Descrição: Recurso extraordinário em que se discute à luz do art. 178, da Constituição Federal, se a pretensão indenizatória por danos materiais em transporte aéreo internacional de carga e mercadoria está sujeita aos limites previstos em normas e tratados internacionais firmados pelo Brasil, em especial as Convenções de Varsóvia e de Montreal.

Como dissemos, os ministros julgaram em favor da primazia da Convenção de Montreal e a incidência da limitação de responsabilidade.

Isso não foi surpresa para nós.

Em evento que realizamos ano passado para o mercado segurador afirmamos que, a despeito da possibilidade de distinguishing do Tema 210/RG, aos litígios envolvendo transporte aéreo internacional de carga se aplicava a Convenção de Montreal.

Posição que defendíamos (e defendemos) já há bastante tempo.

O que afirmamos também na ocasião é que a limitação de responsabilidade poderia ou não se aplicar conforme as circunstâncias e cada caso concreto, segundo os termos da própria Convenção de Montreal.

Afirmamos isso na ocasião, em artigos e ensaios e, agora, reafirmamos.

Mais do que nunca temos que a Convenção de Montreal sempre incidirá, mas a limitação de responsabilidade não necessariamente.

Tudo dependerá do caso concreto.

A limitação de responsabilidade poderá ser afastada caso se prove, independentemente do frete ad valorem, que a transportadora tinha conhecimento do valor da carga e/ou em casos de dolo ou culpa grave (conduta temerária).

Nossa convicção sobre isso aumentou bastante com o julgamento.

Embora à primeira vista a decisão pareça negativa, seus fundamentos contêm uma afirmação extremamente importante, firme e valiosa:

“É infraconstitucional e fática a controvérsia sobre o afastamento da limitação à pretensão indenizatória quando a transportadora tem conhecimento do valor da carga ou age com dolo ou culpa grave”.

Em outras palavras: o STF admite possibilidades de ressarcimento integral, de não incidência da limitação de responsabilidade, independentemente do frete ad valorem.

Encaramos a decisão, portanto, como grande vitória para o mercado segurador, embora em contexto aparentemente oposto.

Mais do que nunca reforçamos a ideia que temos difundido de que a regulação de sinistro é cada vez mais importante para a coleta de documentos hábeis para a exposição de conhecimento do valor da carga pela transportadora e/ou apontar sua conduta temerária, sua desídia administrativa e incúria operacional inescusáveis.

Por isso, ousamos sugerir nos casos de sinistros de transportes aéreos internacionais de cargas cuidado redobrado com os procedimentos de regulação, porque deles emergirá ou não a possibilidade de ressarcimento integral caso não seja possível convencer o segurado a declarar com pagamento de frete ad valorem o valor da carga no conhecimento de transporte.

Tudo será decidido na Justiça estadual. Os casos não mais serão acolhidos pelo STF e dificilmente passarão pelo juízo de prelibação do STJ. As provas ganharão maior força em primeiro e segundo graus de jurisdição para se apurar as causas de afastamento da limitação de responsabilidade. Daí, insistimos nisso, a importância ainda maior das regulações de sinistros.

Estamos à disposição para dialogar com os colegas das seguradoras sobre esse importante assunto e bem defender o ressarcimento integral.

Fecho aspas

Note o leitor que o próprio STF calibrou sua decisão e deixou particularmente claro, nas letras do Tema 1366, que o enfrentamento da limitação de responsabilidade é matéria infraconstitucional; sendo assim, há ainda um aspecto da questão que está em aberto.

Hoje, o que é certo é que o Tema 210 de RG, depois de bastante e acirrada disputa hermenêutica, também se aplica aos litígios de transportes de cargas e/ou protagonizados por seguradoras sub-rogadas; quanto à limitação de responsabilidade, esta só terá guarida se, no caso concreto, as circunstâncias o exigirem de modo incontroverso.

A possibilidade de se aproveitar a fatura comercial (e/ou outros documentos) como hábeis e justos para a declaração de valor, mesmo sem pagamento do frete ad valorem (que, observa-se respeitosamente, tem algo de extorsivo) e de se identificar a conduta temerária (aquela parcela de culpa grave que é um quase-dolo) do transportador são modos fortes de se garantir o ressarcimento integral em um caso concreto conforme os fundamentos normativos da própria Convenção de Montreal.

A incidência da Convenção de Montreal não deve ser confundida com a da limitação de responsabilidade. Esta é parte daquela e depende de não poucas circunstâncias para se efetivas; uma questão não se reduz à outra.

A Convenção de Montreal, aliás, há de ser aplicada em conjunto com toda a ordem jurídica brasileira (interpretação e aplicação sistêmicas), de tal modo a considerar institutos importantes como o princípio da reparação civil integral, os princípios fundamentais da moralidade, da razoabilidade, da proporcionalidade e da equidade, bem como a hodierna visão da responsabilidade civil e seu espírito de máxima proteção às vítimas de danos.

Por isso que ela mesma contém elementos de calibragem que são bem importantes e devem ser fielmente observados para a garantia do ideal máximo do Direito que é a constante e perpétua vontade de distribuir Justiça.

5 | SOBRE A REGULAÇÃO DE SINISTRO

Diante do exposto aqui, digo que estou convicto de que o sucesso do ressarcimento integral dependerá da qualidade das regulações de sinistros.

Quanto mais detalhada e minuciosa for a regulação de sinistro, quanto mais ela coletar documentos que indiquem o pleno conhecimento, pelo transportador, do valor da carga confiada para transporte, menos difícil ficará a tarefa de convencer a Justiça de que a limitação tarifada não tem espaço no caso concreto, independentemente do pagamento do chamado frete ad valorem.

Igualmente menos difícil será a missão de mostrar que, quando não cobra de forma expressa um valor maior de frete, o transportador aceita a declaração e a considera válida e eficaz para a implicação da responsabilidade integral.

Com mais razão ainda, dada sua natureza ontológica, a regulação escrupulosa servirá para expor a conduta temerária do transportador, aquela falta operacional inescusável que se assemelha ao quase-dolo e que, portanto, de acordo com o espírito da própria Convenção de Montreal, afasta a limitação e premia, com razão, o direito da vítima do dano (ou quem estiver em seu lugar, como por sub-rogação) a receber integralmente a reparação dos prejuízos.

A regulação de sinistro, mais do que nunca, será o elemento catalizador de grandes êxitos no exercício dos ressarcimentos em regresso, doravante, contra transportadores aéreos internacionais de cargas.

6 | CONCLUSÃO

Sem desconsiderar a dialeticidade do Direito, afirmo convicto de que o Tema 1366, que definiu o atual momento da jurisprudência, encerrou apenas um capítulo do livro das batalhas jurídicas entre seguradoras sub-rogadas e transportadores aéreos.

Ele definiu a primazia da Convenção de Montreal como fonte legal desses litígios e a aplicação do Tema 210 de RG aos casos de transportes de cargas e/ou demandados por seguradoras sub-rogadas.

Não obstante, não mudou em nada o entendimento de que a limitação de responsabilidade continua a ser tema discutível e a ser ou não reconhecida conforme as circunstâncias e as particularidades de cada caso.

E fez ainda mais: definiu que os debates sobre declaração de valor e conduta temerária do transportador — causas que afastam a limitação tarifada — são essencialmente matérias infraconstitucionais, a serem tratadas no âmbito da Justiça Comum Estadual ou, no máximo, no Superior Tribunal de Justiça.

Estou muito contente e otimista quanto à boa defesa do princípio da reparação civil integral e o não esvaziamento do enunciado de súmula 188 do STF e do art. 786 do Código Civil:

Súmula 188 do STF: O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.

Art. 786 do CC, caput: Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.

 Esse não esvaziamento é parte do forte discurso em defesa do ressarcimento em regresso integral, algo que se reveste de invulgar interesse social e que a todos aproveita, porque não só gera a punição justa ao causador do dano como materializa a boa saúde do negócio de seguros.

Por Paulo Henrique Cremoneze

O autor é sócio fundador de Machado e Cremoneze – Advogados Associados, doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra (Portugal), mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito dos Seguros, em Contratos e Danos e em Direito Processual Civil e Arbitragem pela Universidade de Salamanca (Espanha), Acadêmico da Academia Nacional de Seguros e Previdência, laureado pela OAB-Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia.

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