A intensificação de eventos climáticos extremos, como ressacas, enchentes, ciclones, secas prolongadas e variações severas de maré, tem afetado diretamente a operação e a infraestrutura dos portos brasileiros. Esses fenômenos, antes considerados pontuais, agora revelam um padrão estrutural que põe em xeque a capacidade de resiliência do setor. Diante desse cenário, surge uma pergunta: o seguro e a regulação acompanham essa nova realidade?
A pergunta é importante, senão fundamental, porque imbricada em outra, jurídica e de responsabilidade civil: o padrão estrutural dos fenômenos que não são mais pontuais autoriza o conceito de caso fortuito? As respostas a essas perguntas impactam o desenho jurídico dos contratos de seguro para o setor.
Em 2024, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) registrou um recorde histórico de movimentação portuária no Brasil, com 1,32 bilhão de toneladas transportadas, um crescimento de 1,18% em relação ao ano anterior. Apesar do desempenho positivo, há uma preocupação crescente com os impactos climáticos nas operações.
Estudo técnico da própria Antaq, elaborado em parceria com a EPL (Empresa de Planejamento e Logística), identificou que portos como o de São Francisco do Sul estão cada vez mais vulneráveis às ressacas e elevações do nível do mar. O Porto de Itajaí, também no sul do Brasil, enfrenta desafios orçamentários recorrentes em função da necessidade de dragagens emergenciais e intervenções estruturais após eventos climáticos severos.
Consequências para o funcionamento dos portos
A EPL, responsável por estudos de planejamento logístico até sua incorporação à Valec, e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão federal que subsidia políticas públicas por meio de dados econômicos e sociais, alertam frequentemente para o aumento do risco climático nas infraestruturas críticas do país. No caso dos portos, a exposição é direta e sistêmica: afeta a segurança física das estruturas, interrompe a cadeia logística, compromete contratos e gera responsabilidade civil e ambiental para operadores, arrendatários e concessionários.
No caso desses importantes atores da economia, a imputação de responsabilidade é objetiva, seja porque são prestadores de serviços com o contorno fático-jurídico de obrigação de resultado, seja porque são concessionários públicos federais, seja porque exercem atividades de risco. Em caso de dano, eles respondem — independentemente de culpa. Dessa condição, que é uma presunção legal, somente conseguem se exonerar se provarem, mediante inversão de ônus, a ocorrência de alguma das causas que excluam o nexo causal, dentre as quais o caso fortuito e a força maior.
Considerando que os eventos climáticos adversos e severos não são mais pontuais, e sim estruturais, a estampa da fortuidade perde cor e intensidade, dilatando com isso os espaços da ampla e integral responsabilização.
Para que um evento da natureza, causa-raiz de um dano, seja considerado verdadeiramente fortuito, faz-se necessária a coexistência de três requisitos essenciais: imprevisibilidade, inevitabilidade e irresistibilidade. A ausência de um é bastante para desfigurar o conceito e, consequentemente, manter a presunção de responsabilidade. Ora, se os eventos climáticos adversos e severos são cada vez mais frequentes, conhecidos, até previsíveis, não há como sustentar a ideia de fortuidade, ainda que sejam inevitáveis.
Impacto no ramo dos seguros
Tudo isso se torna ainda mais importante quando se tem em alça de mira que esses mesmos atores, protagonistas da economia e do comércio exterior, obrigam-se naturalmente a seguir os mais escrupulosos cuidados e protocolos de segurança para o bom desempenho de suas funções. A inevitabilidade, pois, tem de ser convertida em evitabilidade. Cabe-lhes a mesma regra de cuidado que se destina aos transportadores em geral, o dever geral de cautela. Todos são obrigados a agir, conforme o domínio do estado da técnica, com prudência e perícia especiais, minimizando riscos e potencializando preceitos e procedimentos eficazes.
Inegável o impacto disso tudo no âmbito dos seguros e a importância de coberturas robustas, bem esquadrinhadas e capazes de atender às novas, porém já conhecidas, situações de risco. Nessas situações, especial destaque merecem as de perfil climático, por assim dizer.
Hoje, pode-se até discutir a causa das mudanças climáticas; pode-se discutir os melhores modos de as enfrentar, e pode até se discutir como as políticas públicas devem ser conduzidas para isso, mas não se pode discutir que elas existam, causam perturbações e são de interesse imediato do mercado segurador e do direito dos seguros.
Ousamos dizer que a saúde do negócio de seguros depende do modo como os riscos climáticos são tratados, especialmente em segmentos sensíveis como os de transportes e de operações portuárias. O novo contexto exige novas respostas jurídicas, técnicas e operacionais. Riscos climáticos e danos ao meio-ambiente não são mais temas acessórios ao cenário geral da responsabilidade civil; passam já a assumir um protagonismo inegável.
Riscos climáticos x regulação
Um dos pontos mais delicados desse cenário é o descompasso entre os riscos climáticos emergentes e a atual estrutura regulatória. Muitos contratos de concessão e de arrendamento portuários ainda não preveem exigências específicas para esses riscos, tampouco incluem mecanismos que incentivem a contratação de seguros adequados à nova realidade climática. No campo ambiental, o licenciamento também carece de atualização: projeções sobre elevação do nível do mar, aumento de chuvas intensas ou efeitos indiretos das mudanças do clima ainda não são incorporadas de forma sistêmica. Embora autoridades como o Ibama, a Marinha do Brasil e a própria Antaq exijam planos de contingência ambiental e operacional, esses documentos precisam estar integrados a uma política mais ampla e técnica de gestão de riscos.
O resultado tem sido uma onda crescente de judicialização, com operadores frequentemente responsabilizados por danos ambientais ou interrupções, mesmo quando os eventos naturais causadores apresentam baixa previsibilidade e escassa margem de mitigação.
Outro aspecto é a limitação técnica quando o tema é risco ambiental das apólices contratadas. Em grande parte dos casos, quando seguem a Cláusula SEP 111/2013, que trata da responsabilidade civil por danos ambientais, restringe-se a cobertura a danos oriundos de eventos de poluição súbita, acidental e inesperada, desde que decorrentes de riscos cobertos pela apólice. E a indenização se limita aos custos com limpeza e contenção, sem contemplar danos à fauna, à flora, aos recursos hídricos, responsabilidade perante o poder público ou terceiros prejudicados.
Na prática, isso significa que diversos cenários de poluição gradual, vazamentos não identificados de imediato, ou contaminações associadas a enchentes e alagamentos — cada vez mais frequentes — deixam de encontrar respaldo no padrão de apólice vigente, o que amplia significativamente a exposição jurídica e financeira dos terminais portuários.
Coordenação entre seguro e regulação
No campo das soluções seguráveis, destacam-se a apólice obrigatória de operador portuário, o seguro de riscos nomeados e operacionais com cobertura para eventos climáticos extremos, os seguros de responsabilidade civil ambiental e os seguros paramétricos, baseados em índices de precipitação, velocidade do vento ou marés anômalas. Ainda assim, embora essas soluções ofereçam apoio relevante, sua efetividade no setor portuário depende da existência de uma cultura consolidada de gestão de riscos e de gestão climática estruturada.
O desafio, portanto, está em alinhar três pilares: a modernização da regulação, a qualificação dos contratos e a sofisticação dos instrumentos de transferência de risco. É preciso incorporar exigências climáticas aos contratos de concessão e arrendamento, atualizar os critérios de licenciamento ambiental e estabelecer incentivos para práticas de resiliência que sejam reconhecidos também na precificação do seguro.
Os portos brasileiros estão na linha de frente das mudanças climáticas. Para garantir sua continuidade operacional, competitividade e responsabilidade ambiental, é fundamental que o seguro e a regulação avancem de forma coordenada, baseada em dados, previsibilidade e compromisso com a sustentabilidade. Nestes tempos de Quarta Revolução Industrial, de era digital e de maximização de riscos, os desafios são enormes, e a responsabilidade civil é cada vez mais exigida e tensionada. Vivemos em sociedades de riscos, e algumas atividades, como as dos operadores portuários, terminais de carga e agentes afins, estão especialmente expostas a eles.
O fomento econômico, a circulação de riquezas e o desenvolvimento social são impossíveis sem os portos e seus atores. Portos foram, são e sempre serão essenciais para o comércio global. Estão ligados ao crescimento social como a sombra está ao corpo. Ninguém em sã consciência maldiz um porto; contudo, não se pode negar que ele é uma potencial fonte de danos. A essa potencialidade, cada vez crescente e mais intensa por conta do desenvolvimento tecnológico-comercial e do elevado volume de cargas movimentadas, somam-se, agora, os novos riscos climáticos e a amplitude dos problemas ambientais.
Danos ambientais
No passado, uma nau a vela que adernava no porto por causa de uma tempestade só gerava danos materiais. Hoje, pode gerar além destes, em escala de valor não antes vista, danos ambientais expressivos, com repercussão em esferas socioeconômicas mais amplas do que as diretamente relacionadas aos interessados imediatos no evento danoso.
Tudo hoje é diferente: se por um lado a previsibilidade é quase absoluta, por outro as consequências dos danos são infinitamente maiores, não raro dramáticas. A responsabilidade civil, então, há de ser cada vez mais intensa, forte, rigorosa e capaz de materializar a antiga máxima do direito de dar a cada um o que é seu.
Por isso, aqueles que atuam com o setor de seguros devem estar muito atentos não só aos riscos, mas aos procedimentos de prevenção e de contingenciamento. Devem estar atentos aos reflexos de cada situação danosa e à proteção econômico-financeira de segurados, operadores portuários e congêneres. Devem, ainda, promover o diálogo com as autoridades públicas para regulamentações capazes de conciliar interesses sem desprestigiar a força na proteção a quem de direito.
Corremos o risco do lugar-comum, mas enxergamos que ele é válido para explicar o momento: novos cenários, novas respostas. Riscos climáticos em si mesmos não são estranhos ao negócio de seguros, porém hoje são capazes de modificar muito mais intensamente a leitura da responsabilidade civil. Aos que atuam no setor portuário, eles podem ser catastróficos se não forem devidamente calibrados e amparados por boas apólices. Neste modesto ensaio, nossa pretensão é clara: afirmar que os seguros são instrumentos de alinhamento, simetria, paridade e — insistimos na escolha da palavra — sobrevivência de um setor essencial ao desenvolvimento da sociedade. Risco há. Resta saber quem estará pronto para ele.
*Por Paulo Henrique Cremoneze da Machado e Cremoneze Advogados e Simone Ramos, Diretora de Portos e Logística da Lockton Brasil
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